“... lançai vossas redes para a pesca em águas mais profundas” (Lc 5,4)
Neste 5º. dom. do Tempo Comum a liturgia nos situa no início do cap. 5 de S. Lucas; encontramo-nos diante de um episódio com múltiplos atos: a multidão que se comprime em torno a Jesus para escutar a Palavra de Deus; o ensinamento a partir da barca; o convite a remar mar adentro e lançar as redes; a pesca surpreendente; a confissão da indignidade de Pedro; o chamado dos discípulos e o imediato seguimento.
O relato não nos diz sobre o que Jesus falava, mas o que segue nos dá a verdadeira pista para descobrir do que se trata; tal relato abre um horizonte novo na vida das pessoas e nos convida a conhecer Jesus mais profundamente e a conhecer-nos a nós mesmos; só assim o seguimento se revela mais inspirado.
No evangelho deste domingo Lucas dá um destaque ao chamado dos primeiros discípulos. Marcos e Mateus situam este chamado no início da vida pública de Jesus. Lucas o narra de uma forma mais compreensível, mais lógica, depois de apresentar Jesus como Mestre nas sinagogas, como o libertador de um endemoniado, como presença terapêutica na cura da sogra de Pedro e dos doentes com diversas enfermidades. Assim, ele nos transmite que o seguimento significa identificação com Jesus e o prolongamento de suas obras.
A primeira parte do relato nos convida a contemplar Jesus ensinando, junto ao lago de Genesaré. Diante da crescente multidão, sobe à barca de Simão e lhe pede para que a afastasse um pouco da terra. Sua presença muda o significado da barca: não é só instrumento de pesca, mas torna-se o “novo púlpito” a partir de onde Ele passa a ter uma visão mais ampla da multidão que o escuta. Pastoral nos espaços amplos ou no descampado, à margem da “sinagoga”, fora dos espaços sagrados.
Jesus se deixa conduzir pela criatividade do Espírito, que rompe os lugares estreitos e controlados. Seu “templo” é a vida, o lugar cotidiano das pessoas. Ali, o anúncio da Boa Notícia do Reino encontra muito mais ressonância no coração das pessoas, sobretudo aquelas que não tinham “lugar” nos templos.
A segunda parte do relato descreve a pesca abundante e surpreendente; os pescadores retornam ao trabalho por iniciativa de Jesus: “remai mar adentro e lançai vossas redes para a pesca” (literalmente: “voltai para a profundidade e fazei descer vossas redes para a pesca”).
A tradução oficial da CNBB diz: “Avançai mais para o fundo, e ali lançai vossas redes para a pesca”, destacando o esforço pessoal dos pescadores. Pedro e seus companheiros revelam-se ser pessoas “arrisca-das”, inclusive ousados, por acreditarem em Jesus na realização de sua tarefa. Jesus lhes pede um novo esforço, os leva a novos mares, e eles assumem a atividade sem resistência.
No fundo, eram homens “aventados” (com o sopro do bom Espírito), pois foram capazes da arriscar, lançando as redes em um horário impróprio (de manhã); sabemos que os pescadores armam as redes ao cair da tarde e as recolhe na manhã do dia seguinte.
“Nós trabalhamos a noite inteira e nada pescamos”. O fato de que a pesca abundante seja precedida de um total fracasso, tem um significado existencial muito profundo. Quem nunca teve a sensação de ter trabalhado em vão durante décadas? Só teremos êxito quando nosso trabalho se situa no horizonte do sentido: para quem trabalhamos? É para o Reino? É para o bem dos outros...? Isto quer dizer que devemos agir de acordo com a atitude vital de Jesus, para além de nossas posições raquíticas e rasteiras. O que o relato nos pede é algo muito diferente: deixar Jesus Cristo entrar na barca de nossa vida. “Confiando em tua palavra, lançarei as redes”.
Simão já havia presenciado a cura de sua sogra. Sua confiança em Jesus aumenta com a quantidade de peixes que apanharam. A pesca abundante, ao meio-dia, depois do fracasso noturno, é um presente, um sinal da benção divina. Pedro não se considera digno de tal benção, mas reconhece a força de Jesus que tivera a iniciava de mover os pescadores a uma nova tentativa de pesca.
A reação dos pescadores é de assombro e reconhecimento que, talvez, não mereciam tanto. Mesmo assim, superado o primeiro impacto emocional, eles encontram um sentido novo e uma direção diferente para avançar na vida. Jesus os chama explicitamente – “eu vos farei pescadores do humano” – ou seja, “eu os convido a que me ajudeis a situar as pessoas em uma posição diferente para recuperar a verdadeira essência da vida”.
Lucas usa a expressão “dsogrón”: reanimador ou despertador de pessoas. Jesus reanima, desperta aqueles rudes pescadores com seu Espírito; tira-os de sua cotidianidade repetitiva, sem criatividade, sem sonhos maiores; abre os olhos deles e os reaviva para prolongar Seu caminho, ou seja, dedicarem-se a despertar o melhor em cada pessoa.
O apelo a lançar “redes em águas mais profundas” é ocasião para motivar e buscar a inspiração no oceano interior. Jesus convida aqueles pescadores, instalados numa maneira tradicional de pescar, a serem criativos na arte de lançar redes: sair da rotina, buscar o novo e o diferente nas profundezas do mar... Isso dá medo, mas os impulsiona a se deslocarem para o desconhecido, saírem das margens conhecidas, seguras e mergulharem na aventura do próprio Jesus.
Jesus sempre se revelou como o homem integrado que, livremente, teve acesso ao seu oceano interior e deixou emergir as ricas possibilidades, recursos, criatividades, inspirações... Movido pelo Espírito, Ele trouxe o “novo” das profundezas do seu próprio ser: novo ensinamento, novo olhar sobre a vida, nova atitude, novo compromisso...
Ao mesmo tempo, com sua presença instigante, Ele despertou, ativou e fez vir à tona o que havia de mais humano nas pessoas. Com sua sensibilidade, Jesus foi capaz de tocar naquilo que as pessoas mais amavam (mundo das esperanças, impulsos para uma vida plena...) e o potencializou.
No caso dos pescadores, homens rudes, mas que carregavam uma nobreza interior, Jesus os desafiou a serem mais humanos. “Farei de vós pescadores do humano”.
"Pescar o humano” é trazer à tona o que de humanidade está escondido ou atrofiado em cada um.
Debaixo das cinzas do cotidiano, encontra-se as brasas da paixão, dos desejos mobilizadores, dos sonhos...
Do mar da Galileia ao mar da vida: este é o movimento que Jesus desencadeia em todos nós. Ele nos desafia a descer no mais profundo no oceano do nosso coração e ali buscar o humano que está escondido: novos sonhos, novas possibilidades, nova inspiração, novo sentido para a existência...
Para isso é preciso vencer o medo que atrofia tudo o que é humano em nós. Alargar nossos espaços interiores, sermos mais ousados e sonhadores, romper com o “normótico” e tradicional, ativar e des-velar o que está escondido. Assim, com nossa presença humanizadora, seremos capazes de pescar o “humano” que também está presente no outro.
Sejamos pessoas que, saindo ao campo da vida, tenhamos a oportunidade de também tornar melhores os outros com quem nos encontramos!
Texto bíblico: Lc. 5,1-11
Na oração: Pedro e seus companheiros desejavam algo novo; no entanto, romper com a normalidade na arte de pescar estava para além de suas possibilidades. Foi necessário que Alguém de fora os incitasse ao abandono daquele modo arcaico de pescar.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
07.02.2024