Dia 05 de março, a Quarta-feira de Cinzas nos introduz à Quaresma, um período de introspecção e penitência que culmina na maior festa do calendário cristão: a Páscoa. Durante 40 dias, a Igreja nos convida à oração e à conversão por meio da Campanha da Fraternidade, não apenas em nível individual, mas também na dimensão social e ecológica. Afinal, tudo que ameaça a vida – seja humana ou do planeta – é também uma afronta ao Criador.
Por isso, em 2025, inspirados em São Francisco de Assis, meditaremos sobre Ecologia integral. Esse conceito nos convida a enxergar o meio ambiente como um todo interligado. Cuidar da terra, da água e do ar não pode ser dissociado do bem-estar humano, especialmente dos mais vulneráveis. A crise ecológica não é apenas um problema técnico ou econômico, mas uma questão moral e espiritual. É urgente superar o paradigma de exploração que destrói a Casa Comum.
Em meio ao meio ao debate sobre as responsabilidades humanas diante da crise climática, uma crítica recorrente recai sobre a tradição judaico-cristã. Ela teria justificado a destruição ecológica, sendo interpretada como um sistema religioso que sustenta a dominação humana sobre a natureza. Essa ideia se baseia no relato da criação no livro de Gênesis em sua famosa passagem:
"Crescei, multiplicai-vos e dominai a terra." (Gn 1,28)
Muitos entendem que o termo “dominai” teria incentivado a exploração desenfreada dos recursos naturais. No entanto, essa interpretação se tornou comum apenas com o progresso técnico e científico da modernidade. Para compreender melhor o significado original, é essencial analisar o contexto do versículo e as nuances da linguagem bíblica. Não se pode desconsiderar que os livros bíblicos são frutos de culturas antigas, cujas cosmovisões eram radicalmente diferentes das atuais. Para resgatar o verdadeiro sentido do texto, é essencial lê-lo à luz de sua tradição original.
O estudo bíblico permite identificar dois relatos no livro do Gênesis sobre a criação do mundo. No primeiro (Gn 1,1 – 2,4), Deus concede ao ser humano a missão de “dominar a terra”. No segundo (Gn 2,4b-25), a ordem divina é mais clara: o homem deve cultivar e guardar a terra, e não simplesmente dominá-la e subjugá-la.
Na tradição bíblica, diferentemente de outras culturas antigas, o ser humano não é escravo da divindade, mas sua imagem e semelhança, chamado a cuidar da criação. O verbo hebraico traduzido como “subjugar” não carrega, em sua raiz original, a ideia moderna de dominação e exploração, mas de trabalho cuidadoso e responsável. Dominar não significa devastar, mas transformar o caos em harmonia, as trevas em luz.
A ideia de que a criação foi entregue ao ser humano para ser destruída não encontra respaldo na Escritura. Ao contrário, o relato bíblico enfatiza o papel do homem como zelador e colaborador da obra divina. Essa responsabilidade fica evidente em Gn 1,29-30, onde Deus estabelece o alimento vegetal para homens e animais, reforçando o equilíbrio e o respeito à criação.
O avanço da ciência e da técnica concedeu à humanidade um poder sem precedentes sobre a natureza. No entanto, o progresso dissociado da ética tem levado à degradação da Casa Comum. Hoje, mais do que nunca, torna-se urgente resgatar a visão cristã autêntica da criação: a de que o mundo não nos pertence, mas nos foi confiado.
Ser cristão, portanto, não é um salvo-conduto para explorar irresponsavelmente os recursos naturais, mas um chamado à responsabilidade ecológica e social. Proteger o meio ambiente não é um ideal romântico ou uma pauta secundária, mas uma exigência da fé. O que está em jogo não é apenas a sustentabilidade do planeta, mas a coerência entre aquilo que professamos e a forma como vivemos.
Diante desse cenário, a pergunta que devemos nos fazer não é se o ser humano tem o direito de dominar a terra, mas de que maneira exercer esse domínio: com ganância ou com gratidão, com violência ou com reverência?
Se, de fato, queremos honrar o Criador, precisamos aprender a cuidar da criação como um dom sagrado, e não como um recurso descartável.
Porque, em última instância, cuidar da terra não é uma opção. É um dever.
Dom Leomar Brustolin
Arcebispo