Bíblia e Catequese
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13/03/2018 Therezinha Motta Lima da Cruz Bíblia e Catequese Os perigos da leitura fundamentalista
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Na vida cotidiana, estamos (ou deveríamos estar) acostumados a ler textos de estilos literários diferentes. A interpretação que vamos dar ao que lemos tem muito a ver com o reconhecimento do tipo de linguagem que ali se apresenta.  Por exemplo: quando cantamos o nosso hino nacional (Ouviram do Ipiranga as margens plácidas de um povo heróico o brado retumbante...) não ficamos achando que as margens do rio tinham ouvidos e, se conhecermos algo de nossa história, também sabemos que o grito da independência não foi proclamado pelo povo reunido naquele lugar. Mas entendemos que a poesia da letra do hino quer despertar em nós um sentimento importante de compromisso  com a nossa pátria e nos convida a sermos esse povo heróico que valoriza a liberdade e quer construir um país onde a dignidade humana seja sempre respeitada. Nesse sentido, apesar de estar descrevendo a cena de um modo diferente do que realmente aconteceu, podemos sentir que a mensagem em si é o mais importante,  era essa a verdade que o autor queria comunicar, e por isso cantamos com entusiasmo nosso hino.

Algo parecido acontece quando lemos fábulas. Podemos pensar nesta: a raposa queria comer uvas mas não conseguia alcançá-las porque estavam no alto da árvore; então, para não parecer derrotada, ela diz que se desinteressou porque as uvas estavam verdes...  Se isso estivesse num livro sobre comportamento de animais, seria uma ideia absurda; mas é uma história que fala de nós e do que queremos conquistar, não de raposas e uvas; aí podemos dizer tranqüilamente que ela comunica uma verdade: quando não conseguimos alguma coisa que queremos intensamente, muitas vezes fingimos desinteresse para não parecer derrotados. 

É razoavelmente fácil perceber que a descrição objetiva dos fatos não é a única forma de expressar algo verdadeiro. A verdade pode ter muitas roupas e, em certos casos, quando falamos de coisas grandiosas que exigem um envolvimento emocional maior, a linguagem poética e simbólica é a mais capaz de expressar uma mensagem que vale para todos os tempos, com uma verdade que vai além do que está sendo narrado. É o que acontece, por exemplo, com o que vemos nos 11 primeiros capítulos do Gênesis. Se quisermos entender o recado que nos está sendo comunicado, temos que ver em Adão, Eva, Caim, Abel, Noé e a torre de Babel figuras que nos fazem pensar no ser humano em geral, de todos os tempos. Fomos todos criados para viver num paraíso, mas estragamos esse paraíso quando achamos que somos “donos” do bem e do mal; deveríamos viver como irmãos, mas não cuidados uns dos outros e temos ciúme das vitórias do próximo; muitas vezes, na família, no trabalho, na sociedade,  vemos ameaças (dilúvios) que podem destruir a vida como deveria ser e aí Deus nos convida a construir um espaço (nossa arca) onde se possa salvar o que ainda resta de bom e recomeçar; nossas vaidades nos fazem desejar subir, dominar tudo (construir nossa torre de Babel), mas aí deixamos de nos entender com os que nos cercam (estaremos falando “línguas” diferentes). 

A leitura fundamentalista não é adequada porque parte do princípio de que a Bíblia, sendo Palavra de Deus, deve ser lida ao pé da letra em todos os seus detalhes, como se esse fosse o único jeito de considerar verdadeira a sua mensagem. Mas a Bíblia não é um livro escrito para ensinar ciências exatas nem História (como aprendemos na escola). Ela tem estilos literários diversos e a sua mensagem teve que ir sendo comunicada a partir do que as pessoas estavam vivendo e conseguindo entender em cada fase do desenvolvimento da sua cultura.   Ao ler um texto bíblico, a melhor pergunta não é: isso aconteceu assim mesmo? A pergunta importante é: o que isso quer me comunicar sobre a minha vida, minhas decisões, minha fidelidade a Deus?   

A Constituição Dei Verbum, do Concílio Vaticano II, diz que “os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus em vista da nossa salvação quis fosse consignada nas Sagradas Escrituras”.  Diz também que  “a verdade é apresentada e expressa de maneiras diferentes nos textos que são de vários modos históricos ou proféticos ou poéticos, ou nos demais gêneros de expressão”.  

São falhas graves decorrentes de uma leitura fundamentalista:

- esquecemos que a mensagem bíblica está encarnada na cultura do povo que a recebeu

- perdemos de vista a mensagem e ficamos só nos detalhes do que é narrado

- não percebemos a riqueza de uma linguagem simbólica

- impedimos o diálogo entre a ciência e a fé

- podemos tirar conclusões que são até contrárias ao Plano de Deus 

O documento “A interpretação da Bíblia na Igreja” diz que a abordagem fundamentalista é perigosa, oferece interpretações ilusórias; usa até uma expressão forte quando afirma que “o fundamentalismo convida, sem dizê-lo, a uma forma de suicídio do pensamento”. 

Para nós, catequistas, o maior perigo estaria em ver pessoas rejeitando a verdade bíblica porque nela há textos dizendo coisas diferentes entre si e o que lá está não combinaria com o que aprendem e percebem ao crescer no conhecimento científico, na compreensão da vida. O texto bíblico depende do que o povo estava preparado para entender em cada época. Nunca usaremos expressões que ponham em dúvida a verdade bíblica, mas precisamos mostrar que a verdade pode ter muitas roupas diferentes  e que podemos até comunicar algo ainda mais verdadeiro com narrações que usam recursos simbólicos ou relêem a própria história colocando nela novos aspectos para apresentar uma mensagem importante de Deus para a nossa vida. 

Que tipo de preparação necessitamos para interpretar corretamente a Bíblia?

Como ajudaremos os catequizandos a perceber que a verdade pode ter muitas roupas diferentes? Que exemplos de literatura não bíblica poderíamos usar para isso?

Como mostraríamos que a fé e a ciência não se opõem necessariamente?

Therezinha Motta Lima da Cruz

 

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