Avança o tempo quaresmal e, neste quarto domingo, nos encontramos com um discurso de Jesus, essencial para compreender seu percurso até a Páscoa. Este texto faz parte do profundo diálogo que Ele manteve com Nicodemos. Este era um rico fariseu, mestre em Israel e membro do Sinédrio, mas com uma concepção do judaísmo mais aberta e com o convencimento de que Jesus era um enviado do Deus de Israel.
Nicodemos foi encontrar-se com Jesus de noite; não queria ser visto pois não lhe convinha. Sua boa reputação como mestre fariseu poderia vir abaixo se as pessoas descobrissem que ele foi ao encontro de Jesus, aquele que, com sua presença, havia provocado agitação na cidade de Jerusalém.
Na realidade, a noite não só era o cenário que o envolvia; Nicodemos precisava de luz diante da obscuridade que o habitava. Suas dúvidas sobre quem era Jesus iam crescendo na medida que este realizava sinais em meio ao povo.
O evangelho deste domingo poderia ter vários títulos, todos eles interessantes: aqueles que buscam na noite da vida; os cristãos anônimos noturnos; diálogo noturnos que falam de grandes amanheceres... De fato, nesse encontro entre Nicodemos e Jesus fala-se de “grandes amanheceres”. É possível que Nicodemos visse algo estranho e interessante em Jesus e procurasse cooptá-lo para seu grupo. E, no entanto, Jesus inverte totalmente a situação e lhe faz grandes anúncios.
Talvez, se não tivesse sido de noite, Nicodemos não teria se colocado em caminho. Ele é nosso espelho; o que acontece com ele, também se faz presente em todos nós.
Assustam-nos as dúvidas, as interrogações, as dificuldades que encontramos para entender o que acontece ao nosso redor e em nosso próprio interior. Mas, bendita noite que nos inquieta e nos tira de nossa anestésica comodidade! Bendita noite que nos move a nos perguntar os “porquês” e os “comos” e põe em questão nossa vida! Bendita noite que nos faz buscadores de sentido!
Por isso, o mestre busca o Mestre, o homem busca o Homem. E este lhe fala de “nascer de novo”, de nascer do Espírito. “Como pode ser isto?” E Jesus resitua Nicodemos em seu caminho de fé.
Jesus, conhecedor de nossa humanidade, confirma a Nicodemos a existência da noite, a sua e a do mundo. Fala-lhe de obscuridades, da cegueira que nos leva, às vezes, a amar mais as trevas que a luz, do mal que provoca infelicidade.
Com suas palavras e ações, Jesus colocou em questão as verdades mais profundas de Nicodemos, aquelas certezas que o haviam configurado, aqueles pilares sobre os quais havia assentado, até então, sua vida e seu ensinamento da Lei.
Jesus reaviva sua memória para que Nicodemos não fique aí: “Deus não enviou seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele”. Jesus lhe oferece palavras de vida, que lhe recordam a possibilidade de eleger o bem, de agir na verdade, de caminhar para a luz. E assim, no meio da noite, Nicodemos recupera a luz. Porque Jesus é a Luz; o Amor é a luz. Foi a Ele de noite, e n’Ele encontrou a luz.
Uma luz tão intensa que o tirou de sua obscuridade, transformando sua vida; e, na morte de Jesus, será o próprio Nicodemos quem abraçará o corpo do crucificado para envolvê-lo em lençóis e perfumes. O mestre dando testemunho público de seu amor ao Mestre; o homem fazendo-nos fixar nosso olhar no Homem, levantado na Cruz, para que n’Ele encontremos a Luz.
Quaresma é um tempo privilegiado para “descer” em nossas noites e responder estas perguntas: por que fugimos tanto de nós mesmos e de Deus? Por que preferimos viver iludidos, sem buscar a luz presente no nosso próprio interior? Porque costumamos praticar essa mentira com muita frequência: pensamos de um modo, mas em nossa maneira de viver não atuamos como pensamos, senão que buscamos manter as aparências, para que os outros tenham boa imagem de nós?
Jesus desmascara nossas mentiras existênciais; é preciso escutar suas palavras: “Quem age conforme a verdade aproxima-se da luz, para que se manifeste que suas ações são realizadas em Deus”.
O símbolo da luz está muito presente na Bíblia (e na vida). A luz é o princípio da criação da vida (Gen 1,3). O povo que vivia nas trevas, viu uma grande luz (Mt 4,16). Eu sou a Luz do mundo (Jo 8,12; 9,5).
A primeira ação e palavra de Deus no relato da Criação é precisamente dar existência à Luz, a Luz que é a consciência e a capacidade de compreender, de dar sentido à realidade criada. Deus separa a Luz das trevas e o evangelho de hoje nos recorda que viver na Luz nos encaminha para a verdade do que somos.
Podemos eleger entre viver a partir da força da Luz, que nos move a fazer o bem, a realizar ações inspiradas pelo Deus-Amor, a cocriar uma nova humanidade..., ou viver a partir da tirania das trevas que nos enreda na obscuridade das armadilhas, justificações e a supremacia de nossos egos. Caminho complexo, de avanços e retrocessos, mas se nos situamos sob a influência da Luz poderemos avançar sem perder o horizonte da Vida eterna, eternizando a nossa vida, como plenitude do que já somos, mas ainda não plenamente.
Costumamos empregar o símbolo da luz nos momentos mais importantes da vida: as mães “dão à luz”. Quando alguém morre, pedimos a Deus Pai que lhe “conceda a luz eterna”. Em situações difíceis não vemos a luz, a saída. Às vezes, nos encontramos com pessoas que “não tem luz” ou nós mesmos somos carentes de luz por fraqueza, cansaços, falta de sentido etc.
Como cristãos, nos aproximamos d’Aquele que é a Luz, para que Ele ilumine nossa vida e nós transmitamos, reflitamos um pouco de Sua luz. Como cristãos, somos como João Batista: não somos a luz, Cristo é a luz.
A vida nos convoca a ser luz: como pais e mães de família que iluminam a vida de seus filhos; como companheiros e amigos que se iluminam mutuamente; uma comunidade religiosa deve deixar transparecer a luz presente em cada membro; a responsabilidade de um educador, de um mestre é grande à hora de iluminar, de ensinar mais com seu testemunho que com sua ciência; os psicólogos, os médicos iluminam também a vida, os problemas das pessoas; os presbíteros, os catequistas tem a responsabilidade de transmitir a luz de Cristo. A luz cristã está presente nos corações compassivos e misericordiosos.
A chama não precisa fazer um “esforço” para iluminar. Na nossa essência, já somos luz, carregamos a chama da luz divina; o que se requer de nós é não bloqueá-la. Isso implica atitudes de autenticidade e de transparência; “andar na verdade”.
Assim como a chama ilumina por si mesma, a luz brota em nós quando vivemos de uma maneira oblativa, sendo canais transparentes pelos quais ela flui. A nós, como a chama, basta ser o que somos e viver em coerência com isso. Então, crescerá em nós uma atitude de esvaziamento do ego e de liberdade interior: deixaremos que a Vida flua, sendo presenças iluminantes em cada recanto e em cada situação de nosso cotidiano. Sejamos transparência da luz divina!
Texto bíblico: Jo 3,14-21
Na oração: Verificar, diante de Deus, se a experiência quaresmal está despertando em seu interior a faísca da luz divina, que o(a) tornará lúcido(a) para dar uma direção oblativa à sua vida; ao mesmo tempo, confirme se esta luz se revela como inspiração para viver o espírito solidário e o compromisso com aqueles que estão perdidos no mundo das trevas e da exclusão.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
05.03.24
imagem: pexels.com