Quem são hoje Caim e Noé?
A parte histórica do povo de Deus na Bíblia começou com Abraão, chamado o pai da fé. Lá aparece Deus lhe dizendo: em ti serão abençoadas todas as famílias da terra. (Gn 12,3); tu serás pai de uma multidão de nações (Gn 17,4). É um jeito bonito de dizer que a história que vai nascer no povo de Israel será o berço de algo que vai beneficiar a humanidade inteira. É nessa história que a imensidão do amor de Deus vai se manifestar, com Jesus encarnado, vivendo como um de nós e por nós entregando sua vida.
Nos 11 capítulos anteriores temos narrativas simbólicas que nos fazem refletir sobre a humanidade inteira. Adão e Eva representam todos nós, chamados a cuidar da vida e fazer dela um jardim agradável e saudável para todos, mas expostos à sedução dos frutos proibidos que o mundo estragado pelo pecado vive nos oferecendo. A torre de Babel representa o orgulho humano de querer construir o que nos elevaria aos olhos dos outros; isso nos leva a desentendimentos, rivalidades, simbolizados na perda de uma linguagem comum, com pessoas que não conseguem mais se entender porque escolheram a competição em vez da fraternidade. Esse símbolo das linguagens que não permitem mais entendimento vai ser o oposto do que nos vai ser apresentado em Pentecostes, quando os discípulos de Jesus falam para pessoas de nações diferentes e cada uma os ouve na sua própria língua. Afinal, onde há amor e fraternidade, todos se entendem e viram parceiros.
Nesses 11 primeiros capítulos temos outras histórias onde os personagens representam situações vividas pela humanidade em geral. Podemos pensar, por exemplo, em Caim e Abel. São irmãos (e nós todos não somos?). Caim é o mais velho e cultiva o solo. Abel nasce depois e se torna pastor de ovelhas. Já aí temos uma situação que vai aparecer outras vezes na Bíblia. O mais velho é visto como tendo mais direitos, é o primogênito. Mas às vezes Deus escolhe o mais novo para uma missão especial. É um jeito de dizer, dentro da cultura da época, que Deus pode valorizar os menores, e que não adianta ninguém se sentir mais importante só por causa da sua posição social. E hoje, quem se sente importante e merecedor de homenagens na nossa sociedade?
Os dois irmãos fazem uma oferta e Deus deu mais atenção aos cordeirinhos oferecidos por Abel do que aos frutos do solo que Caim apresentou. Caim fica irritado, abatido. (Conhecemos irmãos que não sentem bem com o sucesso do outro?)
A irritação prepara Caim para algo pior. É o que acontece ainda hoje com pessoas que ficam cultivando raiva e depois se tornam violentas. Deus adverte Caim, diz que esses sentimentos são porta aberta para o pecado. E vão ser, porque Caim mata Abel. Aí vem o diálogo mais marcante dessa história. Deus pergunta a Caim onde está Abel e ele responde: Não sei. Por acaso sou guarda de meu irmão? Essa pergunta nos vem à mente quando vemos pessoas hoje diante da situação de outros que são agredidos, têm seus direitos negados, e dizendo: E daí? Que é que eu tenho a ver com isso? Na verdade teríamos que ser, de fato, todos guardas de nossos irmãos. Pense só: como ficaria o mundo se todos se importassem com todos? A violência começou aí ,mas podia ainda crescer porque, na época em que essa história nasceu, havia o direito de “pagar na mesma moeda”, o “olho por olho, dente por dente” e então alguém poderia se sentir no direito de matar Caim. Mas Deus não quer isso e põe um sinal em Caim para que ninguém o matasse.
Pense nos dias de hoje. Caim é sinal de violência. Como essa violência se multiplica hoje? Não é só matando que somos violentos. A negação de direitos humanos, o preconceito excludente são também sinais de violência? Como isso acontece? Somos indiferentes, achamos que não temos nada a ver com isso? Como a catequese educaria para superar esse tipo de atitude?
Depois vem a história de Noé. A terra ficou cheia de violência e Deus quer acabar com isso, mas quer fazer também uma aliança com o que ainda pode ser bom. Chama Noé, manda construir a arca e envia um dilúvio. O dilúvio é um símbolo poderoso das conseqüências do pecado humano. Deus nem precisa nos castigar, nós mesmos criamos com nossos pecados um mundo onde a vida se torna impossível, nós fazemos o nosso “dilúvio”. Na arca vão a família de Noé e casais de animais para que a vida possa continuar se reproduzindo. Os que estão na arca se salvam. A pomba que mostra que o dilúvio acabou virou símbolo de paz e o arco íris nas nuvens se tornou sinal da aliança que Deus faz com todos os seres vivos da terra.
E hoje? Há ameaças à paz, à fraternidade, aos direitos humanos nas famílias, nos locais de trabalho, na política... Esses seriam os nossos “dilúvios”, as conseqüências de nossas indiferenças, injustiças, ganâncias etc. De que tipos de Noé estamos precisando? Se vemos a vida e os direitos ameaçados, que tipo de “arca” Deus está nos chamando a construir? Quais seriam as melhores maneiras de fazer isso?
Esses e outros trechos da Bíblia muitas vezes são apresentados como historinhas meio estranhas, que não combinam com uma análise objetiva do que está sendo narrado. Fica-se discutindo coisas do tipo: se só havia Adão, Eva, Caim e Abel, com quem Caim casou e como foi construir uma cidade? O dilúvio aconteceu mesmo? Atingiu a terra inteira? Mas a mensagem que a Escritura quer comunicar é outra, e muito mais importante. A grande pergunta, que a catequese deve se acostumar a fazer, diante dessas e de outras narrações bíblicas é: O que é que isso tem a me dizer sobre a realidade de hoje? O Deus está me convidando a fazer a partir dessa narração?
Uma leitura bíblica centrada na mensagem a ser comunicada evita também que se faça uma leitura fundamentalista que depois vai ser rejeitada por não parecer verdadeira. São narrações sérias, a serem trabalhadas com adultos capazes de aplicar a mensagem à vida atual. Narrativas simbólicas não são mentirosas, são verdades maiores com outra roupagem porque o símbolo vai além da descrição objetiva e pode ser aplicado a outras situações, ao que vivemos no dia a dia.
Therezinha Motta Lima da Cruz